29 de maio de 2020

COVID-19 - PESSOAS ESTÃO FUGINDO DA CIDADE PARA O INTERIOR

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No Pará, cidades com UTIs abarrotadas contrastam com calmaria de povoados que têm conseguido barrar a covid-19 e manter atividades do dia a dia

BBC BRASIL EM SÃO PAULO29 MAI 2020

BBC: Junto da esposa, grávida, Higor Cazimiro deixou Altamira rumo à sua comunidade natal, na Resex Rio Xingu, para fugir da pandemia (a foto foi cortada para evitar a exposição de menores) (Foto: Arquivo pessoal / Higor Cazimiro via BBC)

Cerca de 30 quilômetros percorridos em uma viagem de duas horas e meia de barco pela floresta separam regiões que reagem de maneiras diametralmente opostas à covid-19 na Amazônia.

Em uma das pontas do trajeto, a cidade paraense de Santarém tem 100% dos leitos de UTI ocupados, lockdown para moradores e uma legião de trabalhadores empobrecidos pelos negócios encerrados na pandemia.

Na outra ponta, em comunidades ribeirinhas do rio Arapiuns, não há por ora registro de infecções, moradores circulam pelas casas vizinhas, e a floresta garante alimentação abundante às famílias.

Não por acaso, comunidades à beira do Arapiuns — um afluente do Tapajós — e de vários outros rios da Amazônia acolheram muitos moradores de cidades golpeadas pela covid-19 na região, como Santarém, Manaus e Belém.

Vários deles migraram para zonas urbanas nos últimos anos atrás de trabalho e estudos, e agora voltam para as casas de parentes em busca de proteção contra o vírus e a crise econômica causada pela pandemia.

"Temos visto aqui na região um êxodo de pessoas das cidades rumo ao interior", diz à BBC News Brasil o médico neurocirurgião Erik Jennings Simões, que mora em Santarém e tem longa experiência no atendimento de comunidades indígenas e ribeirinhas da região.

Na comunidade Nova Sociedade, um dos povoados no Arapiuns onde ele esteve nos últimos dias, ouviu de um morador que as casas nunca estiveram tão cheias — tanto de migrantes retornados quanto de familiares nascidos nas cidades em busca de refúgio.

Ele afirma que a maioria das pessoas se deslocou antes da explosão de casos na região, o que tem impedido a entrada do vírus nas comunidades até agora. Conforme a pandemia se agravou nas áreas urbanas, vários povoados passaram a proibir novas chegadas.

Segundo o médico, os cenários radicalmente distintos vividos por cidades amazônicas e parte das comunidades ribeirinhas "mostram a necessidade de pensarmos a floresta como um fator de segurança epidemiológica".

"Quando preservada, a Amazônia pode garantir segurança alimentar e sanitária em eventos desse tipo", afirma.

Reservas extrativistas

No sudoeste paraense, comunidades ribeirinhas de três Reservas Extrativistas (Resex) na região do Médio Xingu também receberam antigos moradores e parentes que fugiram da pandemia em cidades.

A região ocupa cerca de 8 milhões de hectares — o equivalente a dois Estados do Rio de Janeiro — e é habitada por 450 famílias dispersas pelas margens de rios e igarapés.

Morador da cidade de Altamira desde 2017, após ingressar no curso de Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará (UFPA), Higor Cazimiro, de 20 anos, voltou para sua comunidade natal, na Reserva Extrativista Rio Xingu, assim que foram registrados os primeiros casos de covid-19 no Brasil, em março.

Ele diz à BBC News Brasil que sua maior preocupação era que sua esposa, grávida do segundo filho do casal, adoecesse na gestação. Eles pretendem viajar para Altamira só na véspera do parto, já que não há hospitais na Resex, e retornar para a comunidade em seguida.

O estudante compara a rotina na reserva à quarentena em Altamira: "Lá tem que ficar trancado, não pode ir visitar amigo, parente. Aqui é totalmente diferente: pode sair para a roça, pode nadar no rio, pode ir na casa do vizinho, pode brincar de bola."

"Aqui a gente é livre, só não pode ir para a cidade se contaminar", ressalva.

Substituição de ingredientes

Cazimiro diz que a comunidade é quase autossuficiente em alimentos, pois nas últimas décadas incorporou alguns itens vindos da cidade, como arroz, feijão e café.

Os produtos são adquiridos coletivamente por uma associação comunitária e levados a um entreposto dentro da Resex, onde as famílias podem comprá-los ou trocá-los por produtos da floresta, como castanhas, borracha e óleo de copaíba.

Há 27 entrepostos desse tipo — conhecidos como cantinas — na região da Terra do Meio, que engloba as reservas extrativistas e terras indígenas do Médio Xingu.

Cazimiro afirma que a pandemia limitou a oferta de produtos da cidade na reserva, pois houve uma redução das viagens a Altamira para repor o estoque.

Ele diz que alguns moradores têm contornado as restrições resgatando práticas culinárias antigas, substituindo produtos industrializados por ingredientes locais. No lugar de farinha de trigo e óleo de soja, por exemplo, entram a farinha e o óleo do babaçu.


Cazimiro diz que a fartura de alimentos na floresta os deixa em situação bem mais confortável que a de moradores pobres nas cidades, dependentes de trabalhos cada vez mais escassos e carentes de redes comunitárias de apoio.

"Aqui, se precisar, a gente entra na mata e vai atrás de uma caça, a gente vai no rio e pega um peixe, a gente bate na porta do vizinho e pede uma farinha. Na cidade, você não tem como comprar, ainda mais agora que não estamos num momento bom de emprego", afirma.

Contato com parentes

Também estudante universitário, Joelmir Silva e Silva deixou Altamira para se proteger da pandemia junto de familiares na comunidade Maribel, no rio Iriri.

"Seria muito depressivo ficar o tempo todo dentro de um quarto e só conversar com as pessoas que moram com a gente", afirma.

Silva diz que tem se deslocado pela região para alertar moradores sobre a gravidade da covid-19 e ajudá-los a se cadastrar no programa do governo que garante auxílio de R$ 600 durante a pandemia.

"Graças a Deus, a gente tem nossa comunidade, o nosso povo, que nos recebeu tão bem. Fico preocupado com outras pessoas que não têm acesso a lugares como esse para se resguardar desse vírus."

Outra moradora de Altamira, a microscopista Dinalva Batista Camilo viajou com o marido e três filhos para sua comunidade natal, na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, até a poeira baixar.

"A gente não tem que usar máscara, luva, álcool gel. Você pode sair e voltar para casa sem aquela correria de ter de tomar banho e trocar de roupa logo que chega", compara.

Ela diz que a região tem conseguido barrar o vírus graças ao forte controle exercido por líderes comunitários.

"Aqui só estão pessoas que entraram há mais de 30 dias e o povo que mora na comunidade. Só entra e sai quem eles deixarem", afirma.

Fluxo migratório

Assessor técnico das associações que gerem as três Reservas Extrativistas, Naldo Lima endossa o sucesso da estratégia.

Ele afirma que as organizações proibiram a chegada de novos visitantes há várias semanas e suspenderam o trânsito de barcos de não moradores. As restrições valem até o fim do mês, quando serão reavaliadas.

Lima diz que as associações têm rejeitado até pedidos de antigos moradores que, em meio à pandemia, resolveram voltar em definitivo para as reservas.

"Os que estão hoje nas comunidades sabem que não podem nem sair para Altamira, porque a comunidade não vai aprovar que eles voltem", diz.

Ele afirma que muitas pessoas que cogitam retornar às comunidades deixaram o território até 2008, quando ainda não existiam escolas nas reservas e as famílias migravam para Altamira para que os filhos pudessem estudar.

Na cidade, a maioria dos ribeirinhos assumiu trabalhos informais: as mulheres viraram faxineiras e empregadas domésticas, e os homens, estivadores e operários da construção civil.

Com a abertura de escolas nas reservas, segundo Lima, o movimento migratório esfriou. Hoje ele diz que os ribeirinhos que deixam o território o fazem em busca de melhores serviços médicos ou de cursar uma universidade.

Cada reserva tem um só posto de saúde com um técnico de enfermagem, equipado apenas para o atendimento de casos simples. Em comunidades mais afastadas, diz ele, pacientes com doenças crônicas têm de se deslocar por até dois dias de barco até hospitais em Altamira.

Todos os migrantes entrevistados disseram que, se houvesse formas de cursar o ensino superior e acessar melhores serviços de saúde nos territórios, voltariam em definitivo.

"Esse é o ambiente onde a gente nasceu e se criou, nossa raiz está enterrada aqui. Se os serviços públicos fossem um pouco melhores, eu nunca teria saído", diz Higor Cazimiro.

Descentralização da medicina

Para o médico Erik Jennings Simões, a covid-19 tem mostrado que foi um erro concentrar o sistema médico-hospitalar da Amazônia nas grandes zonas urbanas.

Sem UTIs nem condições de realizar cirurgias simples, municípios do interior têm de mandar pacientes para cidades cujos hospitais já viviam sobrecarregados antes da pandemia.

"Nós nos concentramos nas cidades maiores e nos esquecemos de levar a saúde até as comunidades para evitar que elas viessem até a cidade", afirma.

Simões diz que já há tecnologia para realizar cirurgias de média e até alta complexidade fora de grandes hospitais, assim como tratar doenças crônicas e fazer exames de sangue.

O médico participa de uma iniciativa em curso voltada ao combate à covid-19 que, segundo ele espera, poderá servir de modelo para uma reestruturação da atenção médico-hospitalar na região no futuro.

Coordenada pela ONG Expedicionários da Saúde e financiada por doadores, entre os quais o Instituto Socioambiental (ISA), o projeto está instalando enfermarias para atender pacientes e covid-19 de até média gravidade em polos de saúde já existentes em terras indígenas na região do Tapajós e do Alto Rio Negro.

As enfermarias são equipadas com concentradores de oxigênio, aparelhos portáteis normalmente usados no tratamento de enfisema pulmonar. Não substituem respiradores, mas podem auxiliar pacientes com problemas moderados de oxigenação causada pela covid-19.

"É uma descentralização que eu defendo há 18 anos e que fomos obrigados a fazer no contexto do coronavírus", diz Simões.

"Primeiro, porque não tem vaga nas cidades; segundo, porque quando você retira as pessoas dos seus territórios, pode causar mais agressão do que a própria doença", afirma.

"É um começo."

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